O
bezerro de ouro
“Quando
o povo viu que Moisés tardava em descer da montanha, congregou-se em torno de
Aarão e lhe disse: ‘Vamos, faze-nos um deus que vá à nossa frente, porque a
esse Moisés, a esse homem que nos fez subir da terra do Egito, não sabemos o
que lhe aconteceu.’ Aarão respondeu-lhes: ‘Tirai os brincos de ouro das orelhas
de vossas mulheres, de vossos filhos e filhas e trazei-mos’. Então todo o povo
tirou das orelhas os brincos e os trouxeram a Aarão. Este recebeu o ouro das
suas mãos, o fez fundir em um molde e fabricou com ele uma estátua de bezerro.
Então exclamaram: ‘Este é o teu Deus, ó Israel, o que fez subir da terra do
Egito.’ Quando Aarão ouviu isso, edificou um altar diante da estátua e fez está
proclamação: ‘Amanhã será festa para Iahweh.’
No
dia seguinte, levantaram-se cedo, ofereceram holocaustos e trouxeram
sacrifícios de comunhão. O povo assentou-se para comer e para beber, depois se
levantou para se divertir.
Iahweh
disse a Moisés: ‘Vai, desce, porque o
teu povo, que fizestes subir da terra do Egito, perverteu-se. Depressa se
desviaram do caminho que eu lhes havia ordenado. Fizeram para si um bezerro de
metal fundido, o adoraram, lhe ofereceram sacrifícios e disseram: Este é o teu
Deus, ó Israel, que te fez subir do país do Egito’.” (Êxodo 32, 1-8)
Este relato do Êxodo é tão atual e
repleto de detalhes que seria possível escrever diversos textos com base nele,
mas vamos utilizá-lo como uma alegoria.
O povo de Israel ao se inquietar com a
demora de Moisés no monte acreditou que precisava fazer algo para saciar suas
angustias, seus anseios, pois se sentia abandonado à própria sorte e desejava a
presença de um sustentador no meio deles, de alguém que os protegesse, de
alguém que cuidasse deles. Acreditavam, portanto, que estavam agindo de boa
maneira e elegeram um novo deus para si. Aarão agindo de boa índole também
tomou tudo àquilo como bom e agradável ao Senhor ao ponto de proclamar que
seria festa para Deus. É importante notar que deram ao bezerro o lugar de Deus,
o lugar daquele que os libertou da escravidão do Egito e o adoraram.
Entretanto, estavam a criar uma abominação aos olhos de Deus. Pois criaram um
novo deus resgatando um de seus antigos ídolos, um deus aparente, um deus que
lhes parecia necessário para saciar e suprir todas as suas necessidades
imediatas em vez de confiar no Deus verdadeiro, ao qual, talvez sem perceber,
viraram as costas.
Esse é um relato que se repetirá por
toda história da humanidade de modo individual ou coletivo. Individualmente muitos
elevam o dinheiro ao lugar de Deus, outros elevam seus filhos, seus namorados,
seus empregos, outros o sexo e as paixões,... estes deuses são perigosos de
diversos modos, mas no máximo afetam às pessoas que estão próximas ao adorador.
O problema é quando este relato se
repete em um povo como foi com Israel. Podemos relatar duas formas coletivas em
que o povo elege um novo deus ao adorar um novo bezerro de ouro: uma abstrata,
inanimada, despersonificada; e, outra aparentemente abstrata, mas animada e
personificada. Julgo que a segunda é mais perigosa, pois quando alimentada
cresce de forma exponencial até se tornar tão poderosa que só mesmo Deus para
subjugá-la e, novamente, libertar seu povo da escravidão.
A primeira forma é denominada
pejorativamente de “deus mercado”, e, de fato, é um bezerro de ouro para
muitos. Estes são aqueles que acreditam que o poder do mercado saciará todas as
necessidades humanas, ignorando que o homem em sua totalidade não corresponde
apenas a necessidades físico-biológicas – incluindo necessidades secundárias
como conforto – mas também sua dimensão espiritual que é eterna. A bem da verdade que o mercado é o modelo mais eficiente de atender às necessidades
primárias dos homens, adorá-lo de forma incondicional é elevá-lo ao lugar de
Deus.
Diferentemente é a percepção Austríaca Miseniana,
na qual o mercado é apenas o reflexo das Ações Humanas. Estas ações por sua vez
resultantes de decisões baseadas nas crenças e valores assumidos e
compreendidos como morais pelos homens – incluí-se, portanto, valores
religiosos e espirituais. Olhar o mercado por esta perspectiva não faz dele um
deus, pelo contrário, faz dele na sua eficiência uma imagem da ação de Deus na
sociedade através de ações muitas vezes baseadas na moralidade divina.
Há outra figura nas escrituras, mais
especificamente nos capítulos 40 e 41 do livro de Jó. Relatado como a mistura
de um dragão com um kraken, tão poderoso em sua grandeza que nenhuma força terrena
poderia subjugá-lo. O nome deste monstro é Leviatã, a criatura mais temida de
todas. Tão poderosa é essa figura que somente outra criatura que represente a
força da mão de Deus poderá enfrentar-lhe.
Destruição do
Leviatã – Gustave Doré
A segunda forma de o povo clamar por um
bezerro de ouro é na figura do Leviatã de Hobbes. Este bezerro ao contrário do
mercado é concreto, animado e personificado. Não à toa sua grafia é o Estado,
com letra maiúscula para designar nome próprio. Este deus se alimenta das
suplicas do povo que lhe concede poder sobre suas vidas, a princípio
voluntariamente, e não para de crescer até se tornar tão poderoso que somente a
mão de Deus para destruí-lo.
Quando o povo suplica: “Ó, Senhor, dá-nos
proteção, dá-nos saúde, dá-nos educação, dá-nos tudo aquilo de que precisamos!
Sustenta-nos, Senhor!” entregam ao bezerro as rédeas de suas próprias vidas,
sentem-se seguros e amparados no início, mas não percebem que assim suas almas
são devoradas até o ponto de se tornar um povo vazio, sem razão para viver,
irresponsável, libertino, sem qualquer valor duradouro. São povos com altos índices
de suicídio, ocos como sepulcros caiados. Enquanto sentem-se confortáveis e
seguros caminham para o esquecimento do verdadeiro Deus até o ponto em que
praticamente expulsam toda e qualquer religião de seu território a não ser a
secular.
Houve um tempo em que os cristãos
chocaram o mundo porque agiam caritativamente, sem esperar nada em troca.
Apenas por amar a Cristo no próximo. Os antigos e sábios, como a cultura helenística,
conheciam a ação altruísta, mas mesmo esta continha seu próprio interesse. Nada
se comparava ao agir do cristão que muitas vezes dava sua própria vida pela
causa dos mais pobres. Dessa caridade nasceram, por exemplo, redes hospitalares
e associações que visavam estender a mão aos mais necessitados – necessitado e
pobre não era uma questão pura e simplesmente monetária como alguns tentam
reduzir nos dias de hoje. O crescimento e adoração do bezerro surrupia aos
poucos a necessidade da caridade individual, pois o povo entrega ao novo deus o
direito e a obrigação de agir em seu lugar. Por fim transforma a população em
um rebanho para seu próprio alimento. Um rebanho de cordeiros que caminha
silenciosamente para o matadouro. O problema de ir em direção ao matadouro é
que seguir até lá sem uma alma é seguir para o seu fim existencial. Para citar
Plauto: “homo homini lupus”, frase
popularizada por Hobbes: “O homem é o lobo do homem”.
São muitos bezerros sendo fundidos por
todo mundo e cada vez maiores. Algumas pessoas alertam para o surgimento do
grande Leviatã que espalha seus tentáculos para todo o planeta e até mesmo o
povo de Deus começa a dançar e oferecer sacrifícios ao novo Bezerro de Ouro.
Até quando Moisés permanecerá no alto do monte sem orientar novamente o povo no
caminho de Deus?
R. B. Figueiredo